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terça-feira, 26 de setembro de 2023

Perdão

Perdão: Uma Jornada Rumo à Liberdade

Perdão: Uma Jornada Rumo à Liberdade

Conta-se que Deus, certa vez, convocou um de seus anjos e lhe disse: "Quero que você encontre a qualidade mais esplêndida que existe na experiência humana e volte para me contar qual é." O anjo procurou pelo mundo. Ele viu muitas coisas. Mas o que mais o impressionou foi um evento no qual um homem parecia estar confuso e estava parado bem no meio de uma rua movimentada. Um outro homem que estava ali, na calçada, viu que um caminhão enorme estava se aproximando em grande velocidade e que não teria tempo de parar antes de atropelar o homem que parecia aturdido. Então, o homem que estava vendo a cena correu para o meio da rua e alcançou o outro a tempo de empurrá-lo para longe da passagem do caminhão. Lamentavelmente, ele não pôde salvar-se e foi atropelado e morto pelo caminhão. O anjo recolheu uma gota de seu sangue e levou para Deus, dizendo: "Creio que isso é a coisa mais esplêndida na experiência humana: a disposição de sacrificar a própria vida pela vida de seu semelhante." Deus respondeu ao anjo: "Você encontrou uma experiência admirável, mas não é a mais esplêndida. Volte e encontre-a."

O anjo voltou para a Terra e retomou sua busca. Examinou o mundo e, dessa vez, o anjo foi atraído pela experiência de uma mulher dando à luz. A mulher estava gemendo e se retorcendo de dor, até que o bebê nasceu. Assim que ela viu a criança, sua dor desapareceu e uma morna sensação de êxtase a encheu de amor. O anjo estendeu a mão, colheu uma gota de suor da parturiente e voltou, dizendo para Deus: "Creio que isso pode ser a coisa mais esplêndida na experiência humana: trazer uma vida ao mundo." Novamente, Deus disse ao anjo: "De fato, esta é uma experiência excelente, mas não é a mais esplêndida. Tente mais uma vez."

Então, o anjo voltou mais uma vez, a fim de encontrar a experiência humana mais esplêndida. Ele procurou com muito cuidado e, sendo um anjo, podia ver milhares de eventos ao mesmo tempo. De repente, algo chamou sua atenção. Um homem estava correndo por um bosque, e via-se claramente que ele estava possuído por sentimentos violentos. O anjo rapidamente passou a vida deste homem em revista e ficou sabendo que ele acabara de sair da prisão, onde cumprira anos de cadeia por um crime cometido por outra pessoa. Agora, furioso, ele ia procurar se vingar. O anjo o seguiu pelo bosque e viu quando ele se aproximou de uma cabana. O culpado morava lá. Ele é que deveria ter cumprido a pena. Quando o homem que estava correndo chegou perto da casa, viu que uma janela estava iluminada. Parado ao lado da janela, ainda com a intenção de vingar-se, ele olhou para dentro e viu sua futura vítima. O homem e sua mulher — com quem se casara um ano antes — tinham acabado de voltar do hospital com sua filha recém-nascida. Eles estavam muito felizes... O homem, que estava furioso, olhava pela janela, observando cuidadosamente e, aos poucos, seu coração foi se partindo em pedaços. Ele começou a chorar, retornou para o bosque e nunca mais voltou. O anjo recolheu uma de suas lágrimas, voltou a Deus, dizendo: "Creio que isso é a coisa mais esplêndida na experiência humana — o perdão: a habilidade de transcender a raiva, o ódio e o desejo de vingança." Deus felicitou o anjo, dizendo: "Certamente, a capacidade de perdoar é o dom mais esplêndido da experiência humana. Muitas outras coisas também são importantes, mas esta característica é uma que distingue o potencial humano. É imperativo que você entenda o perdão; é só por este motivo que minha criação continua. Na ausência do perdão, tudo desapareceria num clarão instantâneo."

A Essência do Perdão na Perspectiva Espiritual

A narrativa, veiculada pela literatura mística judaica, postula que a capacidade de perdoar é o dom mais sublime da experiência humana. O perdão representa a habilidade de superar sentimentos de raiva, ódio e o anseio por vingança.

No "Evangelho Segundo o Espiritismo", no capítulo 10, item 7, uma lição de conteúdo similar é apresentada sob o título "O Sacrifício Mais Agradável a Deus". Kardec, fazendo referência a Mateus, 5:23 e 24, instrui-nos acerca do perdão aos males que possamos ter infligido a outrem e sobre nossa habilidade de desculpar as injúrias recebidas, ressaltando a necessidade de reconciliação e de superação de ressentimentos e animosidades.

Quando somos os perpetradores de uma ofensa, é crucial reconhecer o erro e buscar o ofendido para apresentar um pedido de desculpas. Contudo, muitas vezes, apenas o pedido de desculpas não é suficiente. Torna-se imperativo reparar integralmente o mal perpetrado contra outrem.

Neste sentido, o espírito Emmanuel, no livro "O Consolador", na questão 135, ao discorrer sobre o mal e o resgate, instrui que o mal é a intervenção indevida Harmonia Divina. E o resgate é equivalente à restauração dos elos sagrados sublimes dessa Harmonia sublime. Ele enfatiza a necessidade de restaurar o equilíbrio e a ordem, corrigindo os erros e as transgressões cometidas, como meio de alcançar a reconciliação e a redenção. Este é o percurso da alma que cometeu um equívoco, uma vez que errar é inerente ao processo de aprendizado do espírito imortal. Ao cometer um erro, o espírito busca reparar todo o dano causado, em um esforço contínuo para aprender e evoluir.

Por outro lado, em outras ocasiões, somos nós os ofendidos. Diante de uma ofensa, restam-nos apenas dois caminhos a seguir: a revolta ou o perdão. A revolta, nutrida por sentimentos de raiva, ódio e anseio de vingança contra o ofensor, nos vincula a ele, pois passamos a ressoar na mesma frequência vibratória na qual ele se encontra. Sem contar que tais sentimentos atuam como dardos envenenados que prejudicam unicamente aqueles que os acolhem no coração, provocando, em muitos casos, danos potencialmente mais severos do que o mal originalmente infligido pelo ofensor.

O Processo do Perdão

Contudo, o perdão é a virtude mais desafiadora a ser cultivada, uma vez que perdoar demanda um significativo esforço de autossuperação. Por essa razão, o perdão não é um presente que podemos distribuir levianamente. Ao contrário, o perdão é um processo com início, meio e fim. Representa um trajeto, uma jornada de amor e generosidade.

A palavra "perdão" por si só nos revela indícios de sua natureza profunda e integral. Ela deriva do latim "perdonare", onde "per" é uma preposição que denota intensidade, e "donare" significa "dar, presentear", portanto, sugere o ato de dar intensamente. De maneira análoga, temos a expressão "percurso", também de origem latina, que simboliza um trajeto completo a ser percorrido. O ato de perdoar, assim, demanda de nós um percurso, uma jornada, uma caminhada introspectiva, pois existem circunstâncias em que a dor e o trauma são tão intensos que impedem que o perdão seja concedido de imediato. Existem situações em que o processo de perdão se estende por anos e até mesmo por várias encarnações.

É por isso que o perdão é uma virtude que demanda tempo. Ele envolve um processo de reflexão, compreensão e aceitação que não pode ser apressado e necessita de um período de maturação e introspecção para se tornar genuíno e efetivo. É uma jornada de autoconhecimento e crescimento pessoal que conduz à reconciliação, à paz interior e à liberdade, visto que o perdão rompe todas as algemas que nos atavam ao ódio e ao ressentimento.

Perdoar não significa esquecer, pois é a memória que nos confere experiência e aprendizado. Perdoar é recordar sem sentir dor. Quando a recordação de um mal não provocar mais nenhum desconforto emocional, é sinal de que o perdão foi, de fato, alcançado.

No entanto, durante a jornada em prol do exercício do perdão, cuja duração pode variar dependendo da disposição do indivíduo em exercê-lo e, ainda, da intensidade da dor provocada pelo mal praticado, o mais crucial é manter-se aberto à possibilidade do perdão, desvitalizando todo sentimento de mágoa e ódio e vingança, que, naturalmente, podem surgir no âmago do ser.

O perdão não possui o poder de eximir o ofensor de enfrentar a lei divina. Você pode perdoá-lo "70x7", conforme aconselhado por Jesus, mas o ofensor terá de reparar todo o mal praticado, tantas vezes quantas o tenha cometido. O perdão é uma virtude que liberta exclusivamente aquele que o concede. Quando você perdoa, liberta-se da mágoa, do ódio, do ressentimento e da revolta. Isso porque os sentimentos de mágoa, ódio, dor e ressentimento que cultivamos em razão do mal que nos foi feito, frequentemente, causam mais danos à nossa saúde física e mental do que o próprio mal que nos foi infligido.

Perdoar é a habilidade de transcender a raiva, o ódio e o desejo de vingança. E, como qualquer habilidade, exige prática e repetição contínua.

Conclusão

Que possamos, com o auxílio dos bons espíritos e amparados pela infinita misericórdia de Deus, desenvolver a habilidade do perdão, exercitando-o diariamente em nossas vidas, nas experiências do cotidiano, buscando, cada vez mais superar nosso egoísmo e orgulho, a fim de nos aproximar, cada vez mais, da verdadeira essência divina.

segunda-feira, 30 de setembro de 2019

Concilia-te com Teu Adversário

Concilia-te com Teu Adversário

Concilia-te com Teu Adversário

"Concilia-te depressa com teu adversário, enquanto estás a caminho com ele, para que não aconteça que o adversário te entregue ao juiz, e o juiz te entregue ao oficial, e te encerrem na prisão. Em verdade te digo que de maneira nenhuma sairás dali enquanto não pagares o último ceitil." - Mateus 5,25

Introdução

De acordo com o dicionário padrão, adversário é definido como o antagonista, opositor, aquele que se opõe. Conciliar, por sua vez, consiste em entrar em acordo com; pôr ou ficar em paz.

O texto destacado traduz um convite de Jesus à pacificação com os adversários como medida terapêutica para a obtenção de saúde mental, emocional e espiritual.

Os Adversários Internos

Obviamente, os adversários mencionados no texto não se referem apenas às pessoas com quem se criaram inimizades devido a contendas, mas também representam os sentimentos e pensamentos negativos que residem na intimidade do ser, do espírito imortal.

No capítulo 05 do livro 'Ceifa de Luz', na mensagem 'A lição da espada', Emmanuel afirma que os inimigos de nossa paz estão ocultos em nosso próprio eu, manifestando-se como orgulho, intemperança, egoísmo e animalidade.

Por sua vez, Joanna de Angelis,no livro 'Triunfo Pessoal', conclui que os adversários aos quais Jesus se referia correspondem aos pensamentos, sentimentos e comportamentos negativos que mantemos e alimentamos.

O Processo de Autoconhecimento

Todavia, o contato com os adversários na intimidade do ser exige um mergulho profundo na alma, alcançado através do autoconhecimento. A literatura oferece uma variedade de técnicas voltadas a esse fim, dentre as quais se destaca a auto-observação.

Esta prática consiste em observar os próprios pensamentos, sentimentos e comportamentos, abstendo-se de qualquer julgamento ou autocrítica. Trata-se de um exercício de pura observação, similar ao recomendado em práticas de meditação.

Desafios da Auto-observação

O processo de auto-observação não é simples nem sempre agradável, pois demanda disciplina e determinação. Muitas vezes, quando o observador se depara com suas próprias dificuldades morais, que antes acreditava não possuir, surge a tentação de desistir da experiência.

Aceitação e Crescimento Espiritual

É natural que, à medida que a auto-observação se aprofunda e as imperfeições morais vêm à tona, surjam sentimentos de vergonha e autocrítica. Contudo, é vital recordar que a Terra é vista como um planeta de provas e expiações, povoado por espíritos ainda em aprendizado, onde o mal tem grande presença.

Diante dessa realidade, não há motivo para cultivar sentimentos de vergonha ao reconhecermos nossas fraquezas morais, já que todos nós as temos em variados graus. O reconhecimento dessas falhas é essencial para o crescimento espiritual: ele nos permite um entendimento mais profundo de nós mesmos e nos incentiva a trabalhar para superar tais imperfeições, em busca da evolução pessoal.

A Importância da Aceitação

Jesus orientou que oremos uns pelos outros, pois estamos todos na mesma faixa vibratória. Aceitar-se como um espírito ainda em evolução, encarnado em um mundo de provas e expiações, é uma atitude humilde, que evidencia a consciência de nossa condição humana e a compreensão de que somos meros aprendizes na jornada da vida.

O Perigo da Negação

Contudo, o perigo está em negar as imperfeições morais que identificamos em nossa essência. Tal atitude impede qualquer possibilidade de pacificação, como Jesus nos orientou. Afinal, como é possível promover a paz com adversários internos quando negamos sua existência?

Conflitos Psicológicos e Libertação

Muitos conflitos psicológicos surgem devido à falta de aceitação das próprias imperfeições, as quais não deixam de existir apenas porque foram negadas. Pelo contrário, quando ignoradas, essas imperfeições tendem a se manifestar nos pensamentos, ações e sentimentos, sem que haja controle consciente sobre elas.

Na mensagem, o preço da liberdade é simbolizado pelo ceitil, um montante monetário de pouca importância. De forma simbólica, Jesus nos ensina que um simples impulso da alma, uma pequena reflexão, é o suficiente para libertar alguém das amarras que ele mesmo criou por conta de sua ignorância.
Neste sentido, a questão 909, do Livro dos Espíritos, lança luz sobre o tema. "Concilia-te com teus adversários". Eis a terapêutica para nossos conflitos internos. Conciliar-se implica em buscar um entendimento ou acordo de paz com nossas inquietações interiores. O Mestre não sugere que eliminemos completamente nossos adversários, isto é, nossas imperfeições morais. Ele jamais nos pediria algo além de nossa capacidade. Devemos entender que a transformação moral é um processo contínuo que se desenrola ao longo de séculos.

O Processo de Transformação

No livro 'Sementeira de Luz', capítulo 30, psicografado por Chico Xavier, o espírito Neio Lúcio ensina que a purificação dos sentimentos ocorre apenas no extenso e por vezes doloroso decorrer dos séculos. É através do ciclo contínuo de múltiplas vidas que conseguimos eliminar nossos defeitos e desenvolver as mais elevadas qualidades do espírito.

A Parábola da Torre Inacabada

Na parábola da Torre Inacabada, Lucas 14, 31-32, Jesus faz o mesmo convite, alertando-nos sobre a impossibilidade de se estabelecer um confronto entre o EU divino (SELF) e o EGO.

"Qual é o rei que, indo à guerra a pelejar contra outro rei, não se assenta primeiro a tomar conselho sobre se com dez mil pode sair ao encontro do que vem contra ele com vinte mil? De outra maneira, estando o outro ainda longe, manda embaixadores, e pede condições de paz."
Diante dos conflitos internos entre o SELF o EGO, a mensagem é clara: devemos reconhecer nossas limitações e buscar a reconciliação interna. Em vez de permitir que esses dois aspectos do ser entrem em conflito direto, é mais sábio buscar o entendimento e a harmonia, assim como um rei que, percebendo sua desvantagem, busca condições de paz antes do confronto

Conciliar significa não entrar em conflito com os próprios defeitos morais, mas sim mantê-los sob controle, evitando que se manifestem de maneira a causar dano aos outros.

Segundo o 'Livro dos Espíritos', na questão 893, aqueles que conseguem adotar tal postura já obtiveram uma virtuosa conquista.

O Verdadeiro Espírita

Allan Kardec, em "O Evangelho Segundo o Espiritismo", capítulo XVII, acrescenta: "Reconhece-se o verdadeiro espírita pela sua transformação moral e pelos esforços que emprega para domar suas inclinações más".

O verdadeiro espírita é aquele que se esforça para dominar as más inclinações. E, dominando-se, transforma-se.

Conciliar com os adversários é manejar os recursos da alma a fim de diminuir, pouco a pouco, a manifestação das imperfeições morais no pensamento, nas escolhas e no comportamento perante a vida. E, neste manejo, sem dúvida alguma, o êxito será resultado de inúmeras tentativas.

Por isso, Jesus nos pede para perseverar, jamais desistir (Mateus 24:13).

Conclusão

Emmanuel, no livro "Pão Nosso", capítulo 36, expressa:

"Muita gente se desanima e prefere estacionar, séculos a fio, nos labirintos da inferioridade; todavia, os bons trabalhadores sabem perseverar, até atingirem as finalidades divinas do caminho terrestre, continuando em trajetória sublime para a perfeição."

sábado, 21 de fevereiro de 2015

A Mulher Equivocada

A Mulher Equivocada

A Mulher Equivocada

O Evangelho narra que, naqueles dias de festa, havia grande tumulto nas ruas. Em dado momento, em meio a um grande alvoroço, um grupo de fariseus lançou aos pés de Jesus uma jovem mulher, flagrada em adultério.

Para o povo de Israel, a definição de adultério diferia entre homens e mulheres. Um homem só era acusado de adultério se mantivesse relações com uma mulher casada ou comprometida, pois entendia-se que, ao fazê-lo, ele agredia outro homem. Por outro lado, quando uma mulher cometia adultério, considerava-se que ela agredia o matrimônio.

A suspeita de adultério deveria ser submetida à prova da "água amarga". A mulher suspeita deveria ingerir uma bebida desagradável feita com pó coletado no Templo. Se ela vomitasse ou adoecesse após a ingestão, era considerada culpada.

O Encontro com Jesus

Aquela mulher que os fariseus levaram até Jesus havia sido surpreendida em flagrante adultério. A pena para tal ato era a morte. Os fariseus a submeteram ao julgamento de Jesus. Na verdade, embora tivessem olhos atentos para todas as faltas alheias, o objetivo naquele momento era mais aproveitar o incidente para armar uma cilada ao Profeta de Nazaré do que zelar pela pureza do matrimônio.

Eles a jogaram no chão, e ela ali ficou, sem coragem sequer de erguer os olhos. Sabia que havia delinquido e conhecia a penalidade. Sabia, igualmente, que ninguém teria piedade dela. Ninguém, exceto Ele.

A Escrita na Areia

Enquanto a indagação dos fariseus aguardava uma resposta do Rabi sobre a pecadora, Ele se inclinou e traçou na areia do pavimento caracteres misteriosos.

O que Ele estaria escrevendo? O nome do cúmplice que havia fugido? O nome do marido que, ferido no orgulho, permitia que sua esposa fosse tão vilmente tratada?

Diversos intérpretes do texto evangélico narram que Ele estaria grafando a marca moral do erro de cada um dos presentes. Curiosos, aqueles que ali esperavam a sentença de morte, para se extasiarem no espetáculo de sangue e impiedade, podiam ler: "ladrão", "adúltero", "caluniador", etc. Em síntese, suas próprias mazelas morais.

O Julgamento e o Perdão

A expectativa crescia. Jesus se ergueu e percorreu com o olhar perscrutador a turba dos acusadores, que sentiram ser atingidos em sua intimidade, e disse tranquilamente: "Aquele dentre vós que estiver sem pecado, atire-lhe a primeira pedra."

Em silêncio, os circunstantes começaram a se afastar, um a um, começando pelos mais velhos, pois os mais velhos carregam consigo uma maior soma de enganos e problemas, remorsos e amarguras.

No meio da indecisão geral, Jesus voltou a traçar na areia sinais enigmáticos. Quando o silêncio se instalou, Ele se levantou. Ali estava a mulher, à espera de seu castigo. Se todos os demais haviam partido, ela deveria esperar d'Ele a sentença e a execução.

O Divino Pastor considerou a fragilidade do ser humano e, compadecido com suas misérias morais, disse-lhe:

"Mulher, onde estão aqueles que te acusavam? Ninguém te condenou?
"Ninguém, Senhor", ousou responder, com a voz embargada

Então, em vez do sibilar mortífero das pedras, ela ouviu as palavras de perdão e de vida:

"Nem eu tampouco te condeno: vai e não peques mais!"

O Encontro Noturno

O espírito Amélia Rodrigues, no livro "Pelos Caminhos de Jesus", relata que, naquela noite, a mulher que errara procurou o Mestre na residência que o acolhia. Ela falou da fraqueza que a dominara nos dias de sua mocidade, sentindo-se sozinha.

O esposo, poucos dias após o matrimônio, retomara as noitadas alegres e despreocupadas com os amigos. Ela, sentindo-se carente, cedera ao cerco do sedutor, que a brindava com atenção e pequenos mimos. Nada disso a desculpava, ela reconhecia. E agora, consumada a tragédia, para onde iria? O esposo não a aceitaria de volta, especialmente após o espetáculo público. Também não poderia contar com a proteção paterna, pois fora levada à execração pública, não tendo recebido simplesmente uma carta de repúdio, o que poderia ter servido até como indenização ao seu pai, já que o marido que assim procedesse deveria devolver uma parte do dote da noiva ao sogro. Não havia lugar para ela em Jerusalém. O que seria dela, sozinha e desprotegida?

A Redenção e o Reencontro

O Mestre lhe acenou com horizontes de renovação, discorrendo sobre como a memória do povo é duradoura em relação às faltas alheias. Ela sentiu, nas entrelinhas, que deveria buscar outros lugares, paragens onde não a conhecessem, nem ao drama que acabara de viver.

Na despedida, Jesus a confortou: "Há sempre um lugar no rebanho do amor para as ovelhas que retornam e desejam avançar. Onde quer que vás, eu estarei contigo, e a luz da verdade, no archote do bem, brilhará à frente, clareando o teu caminho."

Dez anos se passaram, e ei-la em Tiro, em uma casa humilde, onde acolhe peregrinos cansados e enfermos desamparados. Ela erguera ali um refúgio de amor. Jamais esquecera daquele entardecer e da entrevista noturna.

Tornara-se uma divulgadora da Boa Nova. De seus lábios brotavam espontaneamente referências ao Doce Rabi, alentando as almas, enquanto cuidava das chagas dos corpos doentes.

Foi em um final de tarde que lhe trouxeram um homem à beira da morte. Ela o lavou e tratou-lhe as chagas. Deu-lhe caldo reconfortante e, tão logo percebeu que ele estava aliviado das dores, ofereceu-lhe uma mensagem de encorajamento, em nome de Jesus.

Emocionado, ele confessou que conhecera o Galileu em um infausto dia em Jerusalém. Odiara-O, então, porque Ele salvara a mulher que cometera adultério, sua esposa, mas não tivera para com ele, o ofendido, nenhuma palavra.

O tempo fez com que ele refletisse sobre como se equivocara em seu julgamento. Confessou que, há algum tempo, vinha buscando a companheira, procurando-a em muitos lugares, sem êxito. Até que a doença visitou seu corpo, consumindo-lhe as energias.

Embargada pelas emoções desenfreadas naquele momento, a mulher se recordou da praça e do diálogo à noite com o Mestre, um decênio antes, reconheceu o companheiro do passado e, sem dizer-lhe nada, segurou-lhe a mão suavemente e o consolou:

Deus é amor, e Jesus, por isso mesmo, nunca está longe daqueles que O querem e buscam. Agora durma em paz enquanto eu velo, porquanto, nós ambos já O encontramos

domingo, 14 de dezembro de 2014

Maria de Magdala

Maria de Magdala

Ninguém lhe conhecia a origem. Ela aparecera em Magdala, numa ocasião em que a cidade transbordava de estrangeiros, vindos das festas de Jerusalém e de caravanas carregadas de especiarias do Egito.

Magdala era uma aldeia de pescadores, na beira ocidental do lago de Genesaré, onde os palácios se erguiam, ao longo da praia, entre os leques das palmeiras e a sombra dos jardins.

Nas ruas calçadas, trafegam os mercadores, soldados de escudo e lança, publicanos, o povo. Pelas mãos circulam dracmas, sestércios, denários e papiros cambiais aos sons do hebraico, aramaico, grego e latim.

A Vida em Magdala

Ela chegara e logo adquirira fama: Maria. Logo se lhe acrescentara à denominação, o nome da cidade: de Magdala. Era uma mulher de grandes olhos nostálgicos e de longos cabelos caídos sobre as espáduas, como onda escura de ouro.

Seu palácio era procurado pelos príncipes das sinagogas, ricos negociantes, opulentos senhores de terras e de escravos, funcionários de alta categoria da administração herodiana, que lhe depositavam no regaço moedas de ouro, joias, dracmas de prata, perfumes raros, presentes exóticos.

Ela se dava ao luxo de escolher quem lhe aprouvesse e se tornou detentora dos segredos dos fariseus, aqueles que baixavam a cabeça na rua, com ares pudicos, mas que a buscavam, embuçados em mantos negros, a horas mortas.

A Tristeza Interior

Maria, de Magdala ou Madalena, contudo, não era feliz. Surda tristeza a minava, entregando-se, por vezes, dias seguidos, à profunda amargura. Espíritos infelizes a tomavam, em noites variadas, deixando-a alheada, olhos perdidos no mistério de insondáveis distâncias.

Nessas horas, as servas despediam, do átrio, todos os que a buscassem. Alguns homens, sentindo-se preteridos, dobravam as ofertas pelas horas de prazer que anteviam. Tudo em vão.

O Encontro com Jesus

"Numa noite de perfumes primaveris, instada por uma serva de confiança, dedicada e fiel, permitiu um diálogo" sobre o Rabi que andava pelas estradas da Galileia e da Judeia.

Sentiu a esperança renascer, ante a informação de que aquele Rabi convivia com os pecadores, os excluídos. Ele viera para encontrar o que estava perdido.

Numa noite que "balouçava luzes miúdas no firmamento escuro", servindo-se de uma embarcação, atravessou o lago e foi ter com Ele, em Cafarnaum.

O Banquete de Simão

Quando Ele veio a Magdala, ela tomou de um vaso de alabastro que continha o perfume do lótus. Custara-lhe o preço de um campo. Era seu presente ao Amigo.

Sabendo-O em casa de Simão, para lá se dirigiu. Como bom fariseu, Simão experimentava um gozo particular em ostentar virtudes e recepcionar amigos, apresentando, em seu palácio, personalidades que, por qualquer motivo, se tornaram famosas.

Durante meses, após um banquete, os comentários persistiam na cidade, acerca dos personagens que sua casa acolhera.

Com Jesus não fora diferente. Ele e dois de seus discípulos haviam "merecido" a distinção de um banquete na rica vivenda de Simão.

A Transformação

Quase ao seu final, ouviram-se gritos e altercações. Depois, rompendo a segurança, Madalena irrompe na sala.

Tudo se deu tão rápido! Ela se arroja aos pés do Rabi que permanece impassível, na posição em que se encontrava.

Surdos cochichos perpassam pelo ambiente. Simão se enche de cólera, ante o epílogo desastroso do seu jantar. Teme mandar expulsá-la, porque sabe da sua coragem e ousadia. Ela o conhece muito bem, bem como a tantos outros que ali se apresentam como homens de honra

Jesus serve-se do momento para ensinar o Amor, exaltando o gesto daquela mulher que ajoelhada a seus pés, rega-os com suas lágrimas, enxuga-os com seus cabelos e os unge com o excelso perfume que impregna todo o ambiente, concluindo:

"Por isso te digo que os seus muitos pecados lhe são perdoados, porque muito amou; mas aquele a quem pouco é perdoado, pouco ama." (Lucas, VII, 47)

Ergue-se a voz de Jesus com infinita majestade:

"Mulher, a tua fé te salvou; vai-te em paz." (Lucas, VII, 48)

Nova Vida

Na manhã seguinte Magdala soube, pasmada, a notícia da conversão da pecadora. Distribuíra tudo quanto possuía e, com o estritamente necessário, iniciara nova vida.

As vozes da desonra e do despeito sussurravam que ela voltaria às noites de prazer, que enlouquecera, que sempre fora louca.

Ela se juntou aos que seguiam o Mestre. Discreta, mais de uma vez, recebeu a bofetada da desconfiança. Sabia que não confiavam em sua renovação, nem se davam conta de quantas tentações ela estava procurando sublimar.

A Crucificação e Ressurreição

Chegados os dias da denúncia de Judas, a prisão de Jesus, o julgamento arbitrário, ei-la, caminhando para o Gólgota, acompanhando-O.

Permaneceu ao pé da cruz, junto a Maria e o discípulo João. Quando a cabeça D'Ele pendeu, desejou cingir-lhe outra vez os pés e osculá-los com ternura, mas se sentiu imobilizada.

No domingo, indo ao túmulo com Joana de Cusa, Maria, a mãe de Marcos e outras mulheres, encontrou a pedra do sepulcro removida, dobrados os lençóis que lhe haviam envolvido o corpo.

Ela temeu que os judeus houvessem roubado o seu corpo. Enquanto as demais mulheres retornaram a Jerusalém a informar o ocorrido, ela permaneceu no jardim, a chorar.

A saudade feita de dor lhe estrangulava o peito, quando ouviu a voz d'Ele, chamando-a pelo nome. O Mestre estava ali, vivo, radioso como a madrugada recém-nascida.

Os Últimos Dias

Foi anunciar o fato aos discípulos, que não creram. Por que haveria Jesus de aparecer a ela, logo para ela? Somente Maria, a mãe d'Ele a abraçou e lhe pediu detalhes.

Os dias que se seguiram foram de saudades e recordações. As notícias lhe chegavam doces. O encontro com os jornaleiros dos caminhos de Emaús. A pesca incomparável. A jornada a Betânia.

Após 40 dias, no Monte das Oliveiras, junto aos quinhentos discípulos, O viu ascender lentamente, as mãos voltadas para eles, como num gesto de afago, as vestes luminosas, desaparecendo ante seus olhos.

O Legado Final

Desejou então seguir com os novos disseminadores da Boa Nova. Temeram que sua presença pudesse ser perniciosa, semeando desconfiança, naqueles dias incipientes das luzes do novo Reino.

Ela experimentou soledade e abandono e, para arrefecer a imensa saudade do Rabi passou a andar pelas longas praias que tanto O recordavam.

Numa dessas tardes, encontrou leprosos que vinham de muito longe buscar o socorro da cura.

Ela os abraçou, dizendo-lhes que Jesus já partira. Deteve-se por horas a falar, saudosa, do que aprendera com quem era o Caminho, a Verdade e a Vida.

Depois, seguiu com eles ao vale dos imundos.

Sentindo que a seiva da vida diminuía em suas veias, desejou rever a doce Mãe de Jesus, aquela que tanto a afagara em suas amarguras, e foi a Éfeso, morrendo às portas da cidade, sendo brandamente recolhida nos braços do Amor não Amado.