Jesus e a Mulher Siro-fenícia: Uma Lição de Fé e Humildade
Conta-se no Evangelho segundo Mateus (Mt 15,21-28) que, em certo momento de sua jornada, Jesus decide adentrar terras estrangeiras, especificamente na região da Fenícia, em direção a Sidon e Tiro. Lá, ele encontra uma mulher cujo nome e características físicas não são detalhados. O texto informa apenas que ela era grega, de origem siro-fenícia, e, portanto, não pertencia a nenhuma das 12 tribos de Israel; era, assim, uma mulher estrangeira.
Os judeus do mundo antigo costumavam desprezar os estrangeiros, reservando para eles termos ofensivos como "gentios", "imundos" e "cães desprezíveis". Evitavam misturar-se com os gentios, embora em alguns momentos de sua história tenham se relacionado com estrangeiros. Esse desprezo era justificado pelo fato de serem o único povo monoteísta do mundo antigo, reconhecendo a existência de um único Deus, criador de todas as coisas, enquanto os demais povos adoravam múltiplos deuses representados por animais, estátuas e fenômenos da natureza.
Assim, o orgulho dos judeus não lhes permitia manter qualquer tipo de relacionamento com estrangeiros. Evitavam falar com eles e entrar em suas casas para não se contaminarem. Para os judeus daquela época, o mundo era dividido em dois tipos de povos: os judeus, eleitos do Senhor, e os gentios, considerados imundos e desprezíveis. Assim, qualquer pessoa que não fosse de origem judaica era automaticamente classificada na categoria de 'gentios', considerados imundos e desprezíveis.
O Passado entre Judeus e Fenícios
O encontro de Jesus com a mulher anônima é contextualizado pelo profundo desprezo que os judeus sentiam pelos estrangeiros. Neste caso específico, o desprezo era ainda mais acentuado devido à origem siro-fenícia da mulher. Os judeus mantinham ressalvas particulares em relação ao povo fenício, resquícios de um episódio doloroso e significativo ocorrido em seu passado distante.
Esse episódio está documentado no Antigo Testamento, especificamente no primeiro livro de Reis. Trata-se do casamento entre o rei Acabe de Israel e a princesa fenícia Jesabel. Este casamento não foi apenas uma união pessoal, mas também uma aliança política e econômica entre Israel e a Fenícia. A relação entre Acabe e Jesabel acabou por trazer consequências negativas para o povo de Israel, marcando profundamente a percepção que os judeus tinham dos fenícios.
A introdução do culto pagão ao deus Baal em Israel, um país monoteísta, foi uma das consequências mais controversas do casamento entre o rei Acabe e a princesa fenícia Jesabel. Na cultura fenícia, Baal era considerado a divindade da fertilidade do solo, e seu culto era marcado por práticas licenciosas e devassas, incluindo a chamada "prostituição divina", onde a promiscuidade sexual era a norma.
Este desvio religioso teve repercussões devastadoras para o povo de Israel. Algum tempo depois, Nabucodonosor, rei da Babilônia, invadiu Israel e subjugou os judeus à escravidão por um período de 70 anos. Este foi um dos momentos mais sombrios e difíceis da história judaica, e muitos acreditavam que essa escravidão foi uma punição divina por terem se desviado para a idolatria.
Embora esses eventos tenham ocorrido em um passado distante, o impacto emocional e cultural ainda era palpável. A memória desses acontecimentos afetava profundamente a percepção que os judeus tinham dos fenícios, mantendo uma barreira de desconfiança e ressentimento entre os dois povos.
No entanto, Jesus, o mestre dos mestres e terapeuta por excelência, desafia as convenções e preconceitos de sua época ao conduzir seus discípulos para um território que, para eles, era hostil. Ele utiliza a figura de uma mulher fenícia, tradicionalmente odiada e desprezada pelos judeus, como um veículo para transmitir lições inestimáveis de amor e fé.
O Evangelho relata que aqueles eram tempos difíceis para Jesus, pois os fariseus o perseguiam incansavelmente, buscando criar situações que justificassem sua prisão. Após ensinar sobre o Reino de Deus por meio de parábolas, Jesus decide se retirar da região da Galileia. Acompanhado de seus apóstolos, ele se dirige às cidades de Tiro e Sidon, na Fenícia (hoje parte do Líbano).
A Fé da Mulher Estrangeira
Ao se aproximarem da fronteira fenícia, perto de Sidon, uma mulher avista Jesus de longe. Ignorando as barreiras sociais e culturais que a separavam dele, ela sai de suas cercanias e corre em direção a Jesus. Quando finalmente o alcança, ela clama:
"Senhor, filho de Davi, tem piedade de mim!"
Lições de Amor, Humildade e Resiliência
A mulher estrangeira, imersa em uma cultura pagã, surpreendentemente reconhece Jesus como o Filho de Davi , um título profundamente enraizado na tradição judaica. Este termo se refere ao Messias esperado, descendente da casa de Davi. Tal reconhecimento, vindo de uma pessoa alheia à cultura judaica, contrasta com a rejeição dos fariseus e de muitos judeus à missão messiânica de Jesus. Apesar de desprezada pelos judeus, essa mulher ultrapassa barreiras culturais e preconceitos, buscando estabelecer uma conexão com Jesus.
A Fé que impulsiona
Romper limitações morais e priorizar o espírito sobre a matéria é um movimento da alma que cultiva a fé. Jesus compara a fé a um grão de mostarda: pequena em seu início, mas com potencial para crescer forte e robusta se devidamente cultivada. A mulher siro-fenícia exemplifica essa jornada ao se aproximar de Jesus com fé e amor, implorando: Minha filha está sendo cruelmente atormentada por um demônio.
É significativo que seu apelo seja: tem piedade de mim, mostrando um coração maternal que sofre com a dor da filha. Esse amor maternal é modelo do amor universal que Jesus espera de nós: um amor que suporta, tolera, doa-se e perdoa. Nossa capacidade de amar reflete diretamente nossa estatura moral e espiritual.
O Amor que Eleva
No livro Voltei, de Francisco Cândido Xavier, o espírito Irmão Jacob narra sua vergonha ao perceber, no mundo espiritual, que a luminosidade de seu perispírito era inferior à de outros espíritos. Essa luminosidade é fruto da capacidade de amar. Assim, o amor, aliado à fé, constitui o segundo degrau na jornada para o reino de Deus.
Desafios e Oportunidades de Crescimento
Quando os discípulos pedem a Jesus que afaste a mulher, pois seus gritos os incomodavam, vê-se uma falta de sensibilidade. Para eles, ela era um problema. Jesus, no entanto, nos ensina que os problemas são oportunidades de crescimento. Enfrentar adversidades sem recorrer a mecanismos de fuga é essencial para nossa evolução espiritual, o terceiro degrau rumo ao reino de Deus.
Jesus afirma à mulher: Eu fui mandado apenas para as ovelhas perdidas do povo de Israel. Essa resposta ressalta sua obediência à vontade do Pai. Amar a Deus acima de todas as coisas implica respeitar o projeto encarnatório e confiar plenamente em Deus, independentemente dos desafios. Esse é o quarto degrau da jornada espiritual.
A Humildade que Transforma
Mesmo diante de uma resposta que poderia ser interpretada como desprezo, a mulher não se sente humilhada. Em vez disso, responde: Sim, Senhor, é verdade; mas até os cachorrinhos comem as migalhas que caem da mesa de seus donos. Sua humildade é uma força que reflete profunda aceitação das circunstâncias da vida. A humildade, o quinto degrau, é essencial para alcançar o reino de Deus.
A Conclusão: Uma Fé que Inspira
Diante da grande fé da mulher, Jesus afirma: Mulher, é grande a sua fé! Seja feito como você quer.. A filha da mulher é imediatamente curada. Essa narrativa nos ensina que a fé, o amor, a humildade e a resiliência são os elementos que constroem o Reino de Deus em nossos corações. A jornada espiritual exige um compromisso constante com esses valores, refletindo a vontade divina em nossas vidas.